Quando o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2024 foi anunciado, abordando os “desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, o debate ultrapassou as fronteiras das salas de aula. A proposta ecoou amplamente, impulsionando discussões, análises e produções culturais que ressaltam a riqueza e a importância dessa herança para o país.
Hoje, no Dia da Consciência Negra, celebrado em memória de Zumbi dos Palmares, é um momento não só para celebrar, mas principalmente para refletir sobre a resistência e as contribuições fundamentais da população negra à construção do país. É nesse espírito que este texto, movido por profunda admiração e respeito desta redatora, escolhe destacar um resumo da trajetória de Conceição Evaristo. Escritora, militante e referência da literatura brasileira contemporânea, ela simboliza a força e a resiliência das mulheres negras que transformam suas vivências em arte e luta.
Conceição Evaristo: A FORÇA DE UMA VOZ QUE ROMPEU O SILÊNCIO
Conceição Evaristo, nascida em 29 de novembro de 1946, mineira de Belo Horizonte, é uma das figuras mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Escritora, educadora, militante e vencedora de prêmios como o Jabuti, ela transcendeu barreiras do racismo, da pobreza e do silenciamento histórico para se tornar símbolo de resistência e inspiração. Sua trajetória e sua obra, marcadas pelo conceito de “escrevivência”, ecoam as dores, conquistas e vozes de gerações de mulheres negras.
Filha de uma família pobre, Conceição cresceu em uma favela em Belo Horizonte. Desde cedo, dividiu seu tempo entre os estudos e o trabalho como empregada doméstica. Determinada a buscar conhecimento, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Posteriormente, cursou mestrado em Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e concluiu seu doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Sua formação e obra foi construída com muito esforço e simboliza sua resiliência diante das desigualdades. Conceição não apenas abriu caminho para si, mas também pavimentou trilhas para futuras gerações de mulheres negras. Ultrapassando o meio acadêmico com uma linguagem acessível e emocionante, voltada para narrar as dores e a resistência da população negra.
A palavra “escrevivência”, criada por Conceição Evaristo, é a espinha dorsal de sua obra. Esse conceito combina escrita e vivência, destacando como a literatura pode ser usada para narrar histórias reais e romper o silenciamento histórico. Essa abordagem a faz uma das autoras mais estudadas e admiradas no Brasil e no exterior.
“Escrevivência é a nossa maneira de colocar no papel o que vivemos e sentimos. É a luta para que nossas histórias não sejam apagadas.”
Conceição escreveu romances, contos e poemas que abordam temas como desigualdade social, racismo, opressão de gênero e resistência. Sua escrita é intensa, poética e profundamente enraizada na realidade brasileira.
Ponciá Vicêncio (2003)
Seu romance de estreia narra a busca de identidade de uma mulher negra marcada pelos traumas da escravidão e da desigualdade social. A obra aborda como as memórias familiares e a ancestralidade influenciam a construção do presente.
Citação: “A memória é o que nos resta quando a história nos rouba tudo.”
Becos da Memória (2006)
Inspirado em sua infância em uma favela de Belo Horizonte, o livro retrata a luta de uma comunidade ameaçada de remoção. A obra é um grito por justiça e pela preservação das memórias das comunidades marginalizadas.
Citação: “Na favela, a resistência é tanto individual quanto coletiva. Sobrevivemos porque não estamos sós.”
Olhos d’Água (2014)
Essa coletânea de contos venceu o Prêmio Jabuti e explora histórias de personagens marginalizados, destacando a força e a dor das mulheres negras.
Citação : “Os olhos de quem carrega a água da vida são profundos, porque trazem dentro o peso de todas as águas já choradas.”
Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011)
O livro é um tributo à força das mulheres negras que enfrentam opressões cotidianas com coragem e resiliência.
Citação: “Elas choram, mas transformam lágrimas em sementes.”
Evaristo também é uma poeta habilidosa. Sua poesia é carregada de emoção, abordando temas como ancestralidade, memória e amor. No Brasil, sua obra representa uma ponte entre passado, presente e futuro, conectando gerações e lembrando que a luta por justiça e igualdade ainda é urgente.
Além de sua obra literária, ela colabora com movimentos sociais e educacionais que promovem a igualdade racial e temas como resistência e escreviência, como a Coalizão Negra por Direitos e eventos como a Festa Literária Internacional Paraty (Flip) e a Bienal do Livro.
- Recebeu o Prêmio Jabuti em 2015 com Olhos d’Água.
- Em 2017, foi tema da “Ocupação Conceição Evaristo” no Itaú Cultural, uma mostra que destacou sua vida e obra.
- Em 2018, Conceição concorreu a uma cadeira na ABL, com amplo apoio popular, mas não foi eleita. Sua candidatura, porém, expôs o racismo estrutural presente em instituições de prestígio no Brasil.
- Em 2024, tornou-se a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Mineira de Letras, reforçando sua posição como referência literária e cultural.
Entrevista ao Portal Geledés – “O racismo extrapola a pura e simples ignorância“, a escritora fala sobre as dificuldades de promoção e distribuição de livros escritos por negros e como essa dificuldade que é enfrentada reflete a invisibilidade que sofremos em outras atividades.
Entrevista à CartaCapital (2017) – Na entrevista concedida durante a homenagem do Itaú Cultural, Evaristo enfatizou que seu trabalho não é apenas literário, mas político, ao dar visibilidade a histórias antes negligenciadas. Em suas palavras: “Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Minha escrita é a prova de que não aceitamos o apagamento.”
Conceição Evaristo é mais do que uma escritora: é uma força transformadora. Suas palavras continuam a inspirar leitores e intelectuais ao redor do mundo, enquanto sua trajetória de vida é um exemplo de resiliência e superação.
Como a própria Evaristo afirma:
“A literatura é uma arma. E minha mira sempre será a liberdade.”
No vídeo a seguir, a escritora reforça o espaço que ocupa, enquanto mulher negra, na literatura e reforça que é resultado de um processo coletivo de outras mulheres negras que lutam junto com ela. Esse reconhecimento é muito importante e inspirador.
Uma pequena homenagem desta redatora que vos escreve, mineira como ela, cuja força e escrita me inspiram a dar forma às minhas emoções e a construir, mesmo em meio aos desafios, buscando construir um espaço de expressão legítima e respeitosa:
Escrevivências de Minha Terra
Das raízes de Minas brota a palavra,
carregada de resiliência, memórias e dor.
Uma vida que se lavra,
através da escrita de luta, força e amor.
Oh, Conceição, tua voz é estrada,
onde passos negros ecoam tão firmes.
Rasgastando o silêncio, antes imposto,
teus versos, faróis, guiam almas no escuro.
De Belo Horizonte ao papel, a verdade,
cada linha tua é grito e coragem.
Transformas vivências em eternidade,
fazendo da escrita nossa miragem.
E eu, mineira como ti, a celebro,
inspirada na tua força,
em busca pelo espaço e legitimidade.
Com humildade, rompendo laços,
uma escritora ainda em seus primeiros passos.
Conceição, que tua escrevivência me guie,
que teus olhos d’água banhem o chão.
E que, como tu, eu encontre a miríade
de vozes que fazem da escrita revolução.
És farol,
mestra de luta, palavra e paixão.
Te admiro e expresso minha gratidão,
que sua coragem encontre minha expressão.
Renata Carvalho
Redatora e Gestora editorial Carandaí 360
